A investigação genética nas perdas gestacionais recorrentes

Gabriela Gayer1, Manoel Sarno1,2

1 Aloimune – Imunologia da Reprodução, Salvador, Brasil

2 Departmento de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil

O aborto espontâneo é um evento bastante doloroso para um casal que busca ter filhos. No entanto, esse desfecho não é incomum: é o acontecimento adverso mais frequente da gravidez e afeta cerca de 10 a 20% de todas as gestações clinicamente diagnosticadas.

Em geral, abortos espontâneos que ocorrem no início da gravidez, principalmente até a 6ª semana de gestação, têm como causa principal as anormalidades genéticas. Essas alterações são mais graves quanto mais precoces forem as perdas, sendo em geral menos frequentes no abortamento tardio. Assim, dos abortos espontâneos esporádicos, 50% a 70% mostram algum tipo de anormalidade citogenética, com os defeitos cromossômicos mais comuns sendo as trissomias autossômicas (na maioria), a monossomia do X e as poliploidias. A maioria resulta de erros aleatórios no desenvolvimento de células germinativas que, por definição, afetam igualmente casais com e sem histórico de perdas gestacionais. Assim, em geral, o aborto esporádico por anormalidade cromossômica não determina aumento de fator de risco para abortos posteriores.

Já a perda gestacional recorrente, ou aborto espontâneo de repetição (AER), atinge de 2 a 5% dos casais e é definida por duas ou mais perdas espontâneas de gestações constatadas clinicamente (por método ultrassonográfico ou histopatológico) antes da 20ª semana de gravidez.

As causas mais frequentemente relacionadas com o AER incluem, além de alterações cromossômicas, anormalidades uterinas congênitas e adquiridas, desequilíbrios hormonais, fatores autoimunes incluindo síndrome antifosfolípide, causas infecciosas e algumas doenças monogênicas. Além destas causas, fatores aloimunes, ambientais e paternos vêm ultimamente desempenhando importante papel na investigação da perda gestacional recorrente.

Das causas bem estabelecidas de AER, o número de abortamentos prévios unido à idade materna constitui o fator preditivo mais importante para sofrer um novo abortamento. O risco de abortar aumenta de forma progressiva com o número de gestações prévias perdidas.

Apesar de geralmente não serem a causa das anormalidades cromossômicas identificadas no aborto espontâneo esporádico, a frequência de anormalidades parentais ao cariótipo é muito maior entre casais com histórico de aborto de repetição (2 a 5%) do que na população geral (0,2%). Além disso, a prevalência de abortos de repetição é seis vezes maior entre mulheres que apresentam parentes de primeiro grau com o mesmo problema. Esses fatos, entre outros, fundamentam a importância da investigação genética nos casais com perdas gestacionais recorrentes.

A investigação genética dos casais com AER envolve duas abordagens: a análise genética do material do aborto (por cariótipo ou análise molecular), e a investigação dos pais através do cariótipo e da pesquisa de doenças monogênicas específicas.

As alterações citogenéticas numéricas e estruturais dos pais são talvez as causas genéticas mais investigadas na perda gestacional recorrente. Incluem geralmente as translocações balanceadas (mais frequentes), translocações Robertsonianas, inversões, mosaicismos e polimorfismos. Tanto o cromossomo específico afetado quanto os tipos de rearranjo influenciam a probabilidade do desfecho positivo nas próximas gestações. Quando uma anormalidade cromossômica que predispõe à formação de um zigoto anormal é encontrada, existe indicação do diagnóstico pré-natal em futuras gestações.

O aconselhamento genético, nesses casos, é fundamental para o casal entender suas chances de transmissão da anormalidade identificada, as chances de futura perda gestacional e a possibilidade de filhos com alteração cromossômica não balanceada caso optem por uma gravidez sem intervenções. Portadores conhecidos de anormalidades cromossômicas estruturais e ou com alguma alteração monogênica conhecida podem optar por reprodução assistida em combinação com o diagnóstico pré-implantacional (PGD) e seleção de embriões não afetados para o útero.

Nos casais com AER, a testagem genética do produto da concepção pode ajudar a definir a etiologia subjacente e aconselhar os pacientes sobre o prognóstico de uma próxima gravidez. Estudos recentes sugerem que a análise do material de aborto ou tecido fetal através da técnica de microarray, quando combinada com a investigação ampla de fatores não-genéticos, pode fornecer uma causa provável ou definitiva de perda gestacional para mais de 90% dos casais. Sem esse estudo do concepto, as causas prováveis das perdas recorrentes são encontradas apenas na metade dos casos.

Assim, a investigação genética e o aconselhamento genético de casais com perdas gestacionais recorrentes são importantes ferramentas para a elucidação da causa das perdas, para a prevenção de novos abortamentos e também para a busca do desfecho mais desejado para estes casais: uma próxima gestação com boa evolução e gerando filhos saudáveis.

Referências:

-Zegers-Hochschild F, Adamson GD, de Mouzon J, et al. International Committee for Monitoring Assisted Reproductive Technology (ICMART) and the World Health Organization (WHO) revised glossary of ART terminology, 2009*. Fertil Steril. 2009;92(5):1520-1524.

-Practice Committee of American Society for Reproductive Medicine. Definitions of infertility and recurrent pregnancy loss: a committee opinion. Fertil Steril.  2013 Jan;99(1):63.

-Hyde KJ, Schust DJ. Genetic Considerations in Recurrent Pregnancy Loss. Cold Spring Harbor Perspectives in Medicine. 2015;5(3):a023119.

-Popescu F, Jaslow CR, Kutteh WH. Recurrent pregnancy loss evaluation combined with 24-chromosome microarray of miscarriage tissue provides a probable or definite cause of pregnancy loss in over 90% of patients. Hum Reprod. 2018 Apr1;33(4):579-587.

-Kiss, Andrea et.al. Anormalidades cromossômicas em casais com história de aborto recorrente. Rev Bras Ginecol Obstet. 2009; 31(2):68-74

-Barini, Ricardo et al . Fatores Associados ao Aborto Espontâneo Recorrente.Rev. Bras. Ginecol. Obstet.,  Rio de Janeiro ,  v. 22, n. 4, p. 217-223,  May  2000 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-72032000000400005&lng=en&nrm=iso>. access on  20  Apr.  2018.