O Ministério da Saúde anunciou, em março, a nova Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos que, entre outras ações, vai disponibilizar técnicas de reprodução assistida (RA) para casais com problemas de fertilidade e portadores de HIV, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na ocasião, o Ministério informou que um grupo técnico definiria as indicações, os procedimentos, os custos e as situações em que seriam aplicadas as novas medidas. Segundo matéria da Folha de São Paulo de 3 de março último, a proposta prevê “a criação de 26 centros de reprodução assistida para casais inférteis. Seis desses centros serão destinados aos portadores do vírus da Aids”. A Folha também consultou especialistas para projetar o custo do programa: para oferecer técnicas de RA a todos os casais com problemas de fertilidade no país, o governo terá de investir cerca de R$ 3,3 bilhões, pouco mais de 8% de todo o orçamento de R$ 40,5 bilhões do Ministério da Saúde para 2005. A medida é avançada, mas é exequível e oportuna? Há limitações técnicas? Todos os riscos em questão já foram superados? Para discutir o assunto, Ser Médico reuniu os infectologistas Guido Carlos Levi e Vicente Amato Neto neste debate, coordenado pelo conselheiro e também infectologista Caio Rosenthal. Os debatedores defendem eticamente as medidas, mas sua execução prática ainda é uma questão em aberto.
Caio Rosenthal: Qual é a opinião dos senhores sobre a postura que o SUS e, particularmente, o Ministério da Saúde têm em relação à Aids? Todos os recursos e estrutura disponíveis para dar assistência aos portadores de HIV deixam a impressão de que a doença é tratada como uma prioridade. Outras patologias graves e importantes não recebem a mesma atenção em nosso país.
Vicente Amato Neto: O SUS tem uma série de atitudes coerentes e cumpre boa parte de suas atribuições ao oferecer assistência, meios para o diagnóstico e medicamentos aos infectados pelo HIV. Isso acontece devido à dramaticidade da doença e à pressão da comunidade e de entidades. Gostaria que fizessem o mesmo com outras doenças.
Guido Carlos Levi: Concordo. Alguns fatores fundamentais contribuíram para essa oferta ideal de prevenção e tratamento. Em primeiro lugar, o risco de se tornar incontrolável. Quando surgiu, ficou claro que se a epidemia não fosse contida, cresceria a números elevadíssimos. O investimento inicial diminuiu o risco de transmissão e foi necessário para impedir despesas maiores, caso a epidemia fugisse de controle. Em segundo lugar, as ONGs que militam por essa causa são mais numerosas e organizadas – inclusive coordenadas entre si – do que em outras patologias. Suas reivindicações chegam mais ao Ministério da Saúde e ao Governo Federal.
Amato: Outro aspecto importante: a divulgação do que é a infecção foi sensacional! Hoje a comunidade conhece muito bem a infecção pelo HIV. Deixando a humanidade de lado, lutamos e cobramos a vida inteira para que isso acontecesse.
Caio: Como não existe a mesma organização para doentes de hanseníase, tuberculose, etc., o que poderia ser feito para garantir a democratização dos recursos, para que não seja privilégio de quem mais reclama ou é mais organizado?
Amato: Em relação à infecção pelo vírus C da hepatite, a luta e o trabalho estão caminhando para chegar ao ponto que chegou a do HIV. A sociedade começa a se organizar, mostrando o número de infectados e a gravidade do problema. Infelizmente, isso não acontece em relação a outras doenças, inclusive algumas antigas que estão se expandindo. A malária é a pior doença infecciosa do Brasil. Em 2002, tínhamos 620 mil casos. Em seu discurso de despedida do Ministério da Saúde, José Serra falou contentíssimo que tinha conseguido baixar para 350 mil casos, como se esse número fosse algo simples. Em relação a outras doenças, é preciso que as entidades se envolvam na questão. Entre as entidades científicas ligadas a doenças infecciosas, parece que na maioria se interessa mais pelo academicismo. Não vejo muitas entidades cobrando atenção às doenças.
Levi: Há um aspecto socioeconômico determinante. No começo, Aids era doença principalmente de pessoas com recursos e bom nível educacional. A prevalência de hepatite C também é maior em pessoas de melhor nível econômico e escolar. Claro que seria preciso um nível elevadíssimo para realizar o tratamento com recursos próprios. No entanto, é mais fácil que grupos em melhor situação econômica e educacional se organizem do que pacientes com esquistossomose, tuberculose ou outras patologias que afetam os mais pobres.
Caio: Gostaria de discutir a questão do PCR (Reação em Cadeia da Polimerase). Por que o SUS paga técnica de PCR, que é caríssima, para HIV e não para tuberculose, por exemplo? Muitas vezes precisamos fazer um diagnóstico no qual esse exame é fundamental, mas o SUS não paga.
Levi: Além desse exemplo, o Instituto Clemente Ferreira, que é o maior centro do Estado para doenças pulmonares, tem carências em condutas básicas, não só em exames superespecializados.
Caio: Em relação à reprodução assistida, há risco, embora pequeno, de transmissão vertical do HIV. Os senhores consideram ético o SUS financiar técnicas de reprodução assistida para portadores de HIV, na medida em que existe algum risco?
Amato: Do ponto de vista ético, não há nenhum problema, caso os dois – o casal – sejam positivos. Isso acontece a toda hora. As mulheres engravidam, são medicadas e acompanhadas durante a gravidez e na hora do parto. A criança também.
Caio: E o problema de troca de vírus?
Amato: Não sei se os senhores têm informações de que o indivíduo pode se infectar com um vírus mutante, resistente ao tratamento. Não gostaria de entrar nessa questão porque desconheço. Mas, deixando esse risco de lado, a mulher, quando engravida, tem que seguir as recomendações para gestante HIV positivo. Quando o homem é positivo e a mulher negativa, todas as casuísticas – embora não sejam numerosas – mostram que a técnica de lavagem de esperma é segura. Do ponto de vista ético, é necessário cumprir a técnica de lavagem do esperma. Mesmo com os aprimoramentos que ela ainda venha a sofrer, não há relatos de mulheres e crianças infectadas. Quando o homem é negativo e a mulher positiva, o risco de pegar a infecção – numa única relação – é muito pequeno. Mas há também um outro atenuante: ter filhos com sua parceira é um direito do indivíduo. Como isso está acontecendo diariamente, então, não sei se temos o direito de encaixar esse caso dentro de uma discussão acadêmica e dizer que não vale a pena, que o indivíduo pode se infectar.
Levi: Na fertilização in vitro, quando o homem é negativo e a mulher é positiva, ele não corre risco nenhum. Do ponto de vista ético, é absolutamente defensável, inclusive não conheço nenhuma opinião de que seja ilegal no país, tanto que o Ministério da Saúde está promovendo essa oferta para o Brasil inteiro. O que temos que discutir é onde encaixar os pacientes HIV positivos em um programa nacional de fertilização in vitro. Ou seja, os HIV positivos talvez tenham uma situação mais cômoda do que os portadores de outras patologias às quais não se oferece tudo o que se oferece para Aids.
Caio: Caso o programa de RA seja mesmo implantado pelo Ministério da Saúde para atender casais inférteis, é necessária e correta uma “segunda porta especial” para os casais soro discordantes?
Levi: Acredito que deva ser uma única fila, mas deve haver locais especializados para esse tipo de procedimento. Nessa fila, quando chega a vez das pessoas portadoras de hepatite B ou C, casais HIV discordantes etc, eles devem ser encaminhados para centros que tenham condições técnicas de realizar o procedimento. Esses casos exigem procedimentos de segurança diferentes e técnicas mais refinadas do que as oferecidas para os casais que são apenas inférteis.
Caio: A única diferença seria a lavagem de esperma. Em relação às precauções, os demais procedimentos são universais.
Levi: E a lavagem dos aparelhos que foram utilizados?
Caio: Caem nos procedimentos de precaução universal, válidos para todo mundo.
Levi: Toda a aparelhagem tem de ser esterilizada por 24 horas depois do procedimento. Evidentemente, isso reduz o número de pessoas que podem ser atendidas. Essa demora na restituição dos aparelhos tem que ser democraticamente dividida entre todos – entre os que têm e os que não têm doenças infectocontagiosa.
Amato: Mais uma vez, a infecção pelo HIV estimula atitudes. Em relação ao SUS, precisamos almejar que aconteça do jeito correto e com assessoria científica. A fila tem de ser respeitada, evitando o tal do “por fora”. Indivíduos vão aprender isso no SUS, se tornam habilidosos e depois obtêm sua clientela cobrando por fora. Dizem que a estrutura é muito cara, imaginem quanto custaria operacionalizá-la em uma clínica particular.
Levi: Em um congresso, assisti a uma briga entre espanhóis e italianos por causa de alguns aspectos éticos relacionados a esses procedimentos. Os espanhóis verificaram que vários casais discordantes queriam e iriam ter filhos de qualquer jeito, porque não tinham recursos para fertilização in vitro. Os médicos acompanharam cerca de 600 casais, com seus respectivos tratamentos. Também acompanharam os recém-nascidos. Não houve caso de transmissão quando o homem era positivo com carga viral menor que 1500 e a mulher negativa. Das dezenas de crianças que nasceram nenhuma foi infectada. Uma italiana pegou o microfone e acusou os espanhóis de destruir toda a mensagem de sexo seguro dada desde o início da epidemia. Ela disse o seguinte: “isso abrirá as portas para que todos que tomem o medicamento tenham relação sem proteção. Mas nem todos vão ficar fazendo carga viral para saber se está mais baixa, principalmente a população menos aderente”. Como o Amato comentou isso está acontecendo todos os dias. A questão é oferecer uma conduta cientificamente segura. Em São Paulo, as pessoas fazem fertilização in vitro e até hoje não houve caso de transmissão do homem positivo para mulher negativa. Caso aconteça algum acidente um dia, será de uma importância estatística insignificante diante de casais que têm relações para ter filhos sem nenhum cuidado.
Amato: Sobre a questão do custo, dizem ser muito caro, mas sempre fomos idealistas nessas questões, o que tem respaldo científico, o governo tem que sustentar. O governo gasta 350 milhões por ano em vacinas, mas não incluem nessa lista doenças como o rotavírus, hepatite A e varicela. Eles dizem que não têm dinheiro.
Caio: Com essa sua colocação, voltamos àquela questão inicial, das prioridades. Nosso Ministério da Saúde tem verba limitada, pertencemos ao Terceiro Mundo com necessidades gigantescas em termos de saúde pública. No entanto, o SUS se propõe a garantir reprodução assistida para pacientes específicos. É defensável, ético e correto destinar verbas vultosas a um programa de reprodução assistida para HIV?
Levi: Ético é uma coisa, correto é outra.
Amato: Eu ia justamente dizer isso. Como colocação ética, é muito bom pensar nessas coisas e evoluir para dar assistência à comunidade. A operacionalidade e a possibilidade são outros problemas. A Constituição tem aquela famosa frase de que “todo mundo tem direito à saúde”, mas os equívocos a propósito dessa frase são inúmeros. Neste caso pode acontecer mais um. Vamos criar um programa com estrutura elogiável e louvável, que não tromba com a ética. Quanto à possibilidade de executá-la na prática, pode acontecer o mesmo que está acontecendo com outras questões.
Levi: O Caio citou que estamos em um país de Terceiro Mundo com verbas muito restritas para a saúde. Os cortes de verbas para a saúde são preocupantes, na medida em que são mantidas para outras áreas que consideramos menos prioritárias. O desejável é ter verbas para tuberculose e para HIV. Se colocarmos essa questão do ponto de vista emocional, fica muito difícil debater. Você pode dizer: é justo você dar reprodução assistida e não ter remédio para a tuberculose no Brasil?
Caio: O programa é elogiável, correto, ético, mas não é uma prioridade.
Amato: É um programa elogiável, vai ao encontro da necessidade de muitas pessoas, foi uma iniciativa apropriada. Cabe ao governo implantá-la corretamente, conforme a sua intenção.
Caio: Os medicamentos antiretrovirais têm limitações devido à interação com outras drogas. Na reprodução assistida, a mulher precisa ser estimulada através de medicamentos que, eventualmente, são incompatíveis com os antiretrovirais. Até onde eu sabia, não há uma literatura que dá suporte ao procedimento.
Amato: Não conheço nada concreto que mostre objetivamente que essas interações possam ser inadequadas. É obrigatório, então, estudar isso. É uma controvérsia que precisa ser esclarecida. Diante do que está acontecendo, é obrigatório definir cientificamente a questão da interação de forma clara.
Levi: Não há informações definitivas nesses aspectos. Mas há muita informação disponível. Recentemente, surgiu um trabalho sobre a interação dos hormônios com uma série de medicamentos. Alguns podem ser usados, outros com cuidado ou doses diferentes. Precisamos ter especialistas que estudem esse grupo mais a fundo, estabelecendo normas para que possa ser feito da maneira mais segura possível. Como diz uma portaria do Ministério da Saúde, “assuntos de alta especialização devem ser resolvidos em ambientes de alta especialização”.
Caio: Então, concordamos que ainda não existem estudos que limitam este assunto, é uma questão que está em aberto.
Levi: Do ponto de vista prático, existem dezenas de casos em que foi realizado sem que se tivesse nenhuma informação de transmissão ou de falha da terapia. Dos grupos que estudam o assunto, em Harvard, Nova York ou Milão, nenhum relata que teve dificuldades intransponíveis.
Amato: A pergunta do Caio é um estímulo para a normalização do assunto.
Caio: Isso assusta. Recentemente saiu um estudo sobre a interação do omeprazol com atazanavir. Em termos de concentração plasmática, o omeprazol joga os níveis de atazanavir lá para baixo. No entanto, o omeprazol é usado toda hora.
Levi: Recentemente saiu uma informação de que é necessário um intervalo mínimo de 12 horas entre o uso dos dois medicamentos. Mas não há nenhuma informação sobre os outros medicamentos com a mesma finalidade. Da forma como foi colocado, fica a impressão de que o omeprazol tem interação, mas e os outros?
Caio: Então, pergunto se também não desconhecemos os efeitos da interação dos hormônios e estimulantes de ovulação com antiretrovirais?
Levi: Temos que usar, sempre, o conhecimento científico disponível na data. Quando começamos a usar antiretrovirais, ninguém imaginou que teríamos lipodistrofias. Demorou alguns anos para descobrimos, o que não invalida o seu uso da maneira mais apropriada na época.
Amato: Quando os doentes se queixam muito de lipodistrofia, digo que o HIV é o inimigo maior que estamos controlando e vencendo.
Caio: Gostaria de terminar o debate, agradecendo a participação dos senhores.
Caio Rosenthal é infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e conselheiro do Cremesp.
Guido Carlos Levi é infectologista e ex-diretor técnico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
Vicente Amato Neto é infectologista e professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, foi secretário de Saúde do Estado.