Marie Brooks e Peter Foulsham seguem de carro para o hospital em Basildon, Essex, onde ela vai se submeter a uma ultrassonografia. Marie, 27 anos, espera o primeiro filho, e eles estão ansiosos para ver a imagem da nova vida que se desenvolve dentro dela.
No percurso, Marie diz a Peter, 32 anos, que pode sentir o bebê chutando. “Você acha que vai se parecer com você?”, pergunta ele, olhando a estrutura delicada, os cabelos escuros e os olhos azuis profundos de Marie.
Para o exame de rotina, o abdome de Marie é besuntado de gel e o técnico desliza o transdutor sobre sua pele, os olhos atentos às formas captadas pelas ondas ultrassônicas e projetadas no monitor.
Ao término do exame, Marie fica ansiosa quando ela e Peter são levados, através da sala de espera lotada, a uma saleta reservada. Seus olhos passeiam pelas poltronas e sofás. Este é o lugar para onde você é levado quando as notícias não são boas.
Uma funcionária vem falar com eles. O feto tem anomalias graves, diz ela. O estômago do bebê está se desenvolvendo junto do coração – um problema raro conhecido como hérnia diafragmática.
“Existe um especialista em Londres que talvez possa ajudar”, ela prossegue. Enquanto Marie luta contra as lágrimas, a funcionária pega o telefone e marca uma consulta urgente no King’s College Hospital.
De volta à casa, Marie, supervisora de um call center, pesquisa na Internet o termo “hérnia diafragmática”. O resultado não a tranquiliza. Mais tarde, sente o bebê chutar, mas nem comenta com Peter. A alegria se foi.
Alguns dias depois, no sul de Londres, o chefe de cirurgia fetal do King’s College Hospital está mergulhado em compromissos e horários de cirurgias e consultas. Num dia normal como esse, o professor Kypros Nicolaides – um homem de 50 e poucos anos, esguio e de cabelos escuros – atende dezenas de casais ansiosos.
Deitada numa cama de hospital, Marie Brooks já foi vista por uma junta médica quando o professor Nicolaides chega. Ele olha Marie, que segura a mão de Peter, e sente a angústia do casal.
Enquanto examina Marie, Nicolaides conversa com os dois, perguntando sobre a vida deles.
– O que você faz? – pergunta a Peter, sentado a um canto, sentindo-se meio excluído.
– Sou engenheiro.
– Que tipo de engenheiro? Dos bons? – instiga o médico, com um sorriso.
Nicolaides herdara do pai, médico em Chipre nos anos 1950, o talento para acalmar os pacientes. Ele se lembra das pessoas nos vilarejos, gritando: “É o doutor! O doutor está vindo!” Beijavam seu pai e davam-lhe presentes. Ele recorda que, numa visita a um homem que estava morrendo, seu pai disse: “Meu bom amigo, lembra-se de quando eu era menino e você me levava para passear no campo em seu burro? Bem, você agora esta com câncer. Deixe seus negócios em ordem, converse com a família e nós vamos cuidar para que você não sinta dor em seus últimos dias.”
Em seguida, brincou com a mulher do paciente, uma senhora de 75 anos: “E a senhora compre uma garrafa de vinho para Jan e faça amor com ele para que ele se sinta melhor.” Todos riram. “Esse era o jeito do meu pai”, lembra Nicolaides. “Onde havia morte também havia riso.”
A conversa de Nicolaides com Peter sobre trabalho desfez parte da tensão. O cirurgião põe a mão no braço de Marie. “Agora vou explicar o problema e dizer o que podemos fazer.”
Uma abertura no diafragma – a membrana muscular que separa o tórax e o abdome – permitiu que o estômago, o fígado e o intestino do bebê subissem para a caixa torácica, não deixando espaço para que os pulmões crescessem.
Existe uma esperança, disse ele ao casal. O King’s Hospital é o pioneiro num novo tipo de tratamento: operar o bebê dentro do útero da mãe.
“Inserindo um pequeno balão inflável pela garganta do bebê, bloqueamos a traqueia e evitamos que o líquido produzido normalmente pelos pulmões suba por ela e saia pela boca. Em consequência, os pulmões se enchem e se expandem, empurrando os outros órgãos de volta para o abdome. Depois do nascimento do bebê, a hérnia pode ser corrigida com cirurgia.” O procedimento só havia sido tentado duas vezes até então, ele conta. As cirurgias correram bem tecnicamente, mas os bebês morreram.
– Vocês precisam pensar com calma para decidir o que fazer – disse ele. – Entretanto, sem esta operação é quase certo que seu bebê não sobreviva.
Marie retribui o olhar direto do cirurgião.
– Se o senhor conseguir salvar meu filho, ele vai ter uma qualidade de vida razoável?
Ele assente com a cabeça.
– É uma cirurgia experimental, mas não vou usar vocês como cobaias. Não vou lhes deixar com uma criança incapacitada nas mãos.
Marie e Peter optaram pela operação. A decisão foi aterrorizante, mas estava claro que, se alguém podia realizar com êxito aquela cirurgia, esse alguém era o Dr. Nicolaides. Ele foi pioneiro no uso do ultrassom para detectar a síndrome de Down – no exame de translucência nucal, que hoje rotineiramente substitui em muitos casos a arriscada amniocentese. Também desenvolveu o método para diagnosticar espinha bífida com a utilização do ultrassom, e foi um dos primeiros a realizar a transfusão total de sangue dentro do útero.
No entanto, apesar de toda sua experiência, a operação no bebê de Marie era assustadora.
Nicolaides realizou as duas cirurgias anteriores com a ajuda de dois colegas, especialistas mundiais em cirurgia fetal: os professores Jan Deprest, de Leuven, na Bélgica, e Eduard Gratacós, de Barcelona, na Espanha. Eles haviam esperado o máximo possível e operado as gestantes com 33 semanas, quando os bebês teriam maiores chances de sobreviver no caso de parto prematuro.
As duas cirurgias correram bem, o que tornou mais desanimador o fato de os pulmões se recusarem a crescer. Nenhum dos bebês sofreu efeitos colaterais da operação. O que tinha dado errado, então? Os três especialistas só podiam especular que, na altura de 33 semanas, o pulmão de um bebê pode estar programado para não crescer mais, até o nascimento.
Na operação seguinte – a de Marie – eles decidem operar mais cedo, com 26 semanas. “Temos de ousar”, diz Nicolaides.
Ainda assim, como pai de duas crianças pequenas, ele está consciente da enorme confiança que Marie e Peter depositam nele. “Quando vejo um feto, imagino a criança que ele vai ser. Vejo meus filhos. É uma grande responsabilidade.”
Marie Brooks dá entrada no King’s Hospital com 26 semanas de gravidez. Zonza com os medicamentos pré-operatórios, ela é levada para a sala de cirurgia. Cerca de 17 especialistas de várias partes do mundo estão reunidos para assistir àquele procedimento pioneiro. Nicolaides toca o braço de Marie e aponta com a cabeça para os professores Deprest e Gratacós. “Estes são cirurgiões altamente qualificados, os melhores do mundo. Estou muito otimista”, diz ele baixinho.
Quando Marie é anestesiada, Nicolaides pega o delicado transdutor de ultrassom e todo o resto some de sua mente. Ele se concentra no monitor acima da mesa de operação. O aparelho será seus olhos, guiando-o no uso de instrumentos minúsculos, alguns quase tão finos quanto um fio de cabelo humano.
Nicolaides faz uma incisão de 3 milímetros no abdome de Marie. “trocater, por favor.”
Ele insere um instrumento de metal afiado, embutido em um tubo plástico. É por esse tubo, ou cânula, que os cirurgiões vão passar os pequenos instrumentos no decorrer desse procedimento de precisão e riscos imensos.
Evitando cuidadosamente a placenta, Nicolaides atravessa com o trocarter a parede do útero de Marie e penetra na cavidade amniótica. Seu olhar está fixo no monitor.
Observe a agulha o tempo todo. Não tire os olhos dela! As frases lhe vem a mente enquanto ele dirige o tubo para a boca do bebê. É um mantra que repete constantemente para todo cirurgião que ele treina.
Agora ele retrai a ponta cortante do trocarter, deixando a cânula oca no local. Nela, insere um endoscópio, uma câmera intra-uterina de apenas 1,2 mm de largura que vai transmitir imagens mostrando os mínimos detalhes da anatomia imatura do bebê, aumentadas até 40 vezes em uma segunda tela de TV.
Um leve toque com endoscópio e o bebê, obediente, abre a boca. Nicolaides passa o aparelho sobre a língua e fundo da garganta do bebê, balançando de leve, a fim de estimulá-lo a esticar o pescoço.
Eles estão prontos para entrar na traqueia. É um momento crítico, que requer a habilidade dos três cirurgiões. Inserir com segurança um tubo respiratório na traqueia de um adulto sem perfurar o esôfago já é bastante difícil. No feto, as duas minúsculas aberturas estão à distância quase imperceptível de 2 mm uma da outra. É impossível diferencia-las usando somente o endoscópio, com seu campo de visão restrito.
Enquanto Deprest maneja o endoscópio, Nicolaides se concentra no ultrassom, usando sua habilidade para interpretar as imagens densas fornecidas pelo aparelho, afim de guiar os cirurgiões.
Deprest avança milímetro a milímetro, procurando as cordas vocais e o ponto de entrada, afim na linha onde as cordas vocais se unem. De súbito, ele se detém.
– Algo parece está errado! Será que passei do ponto?
Nicolaides olha atento o monitor, indiferente à tensão na sala.
– Parece que estamos no esôfago. Volte um pouco e direcione o endoscópio para frente – ele ordena.
Indo adiante eles correm o risco de romper algum vaso sanguíneo importante ou ferir tecidos delicados.
Logo tudo está bem novamente. Assim que a imagem dos característicos anéis cartilaginosos da traqueia aparece na tela, ouve-se um suspiro de alívio. Agora Gratacós deve fazer o que praticou centenas de vezes no laboratório – Só que num feto humano. Ele tem que inserir no braço lateral do endoscópio um cateter com a espessura de 1/3 de milímetro, levando um minúsculo balão de látex, e posicioná-lo abaixo das cordas vocais, exatamente acima do ponto em a traqueia se divide na direção de cada um dos pulmões.
Gratacós enche o balão com 0,8 ml de água esterilizada. Uma pequenina válvula de borracha vai impedir que o líquido vaze, mantendo, assim, o balão inflado.
Nicolaides vasculha o monitor para frente e para trás, checando os batimentos cardíacos, vigiando o momento em que o balão inflado vai aparecer na tela como uma massa escura.
“Estou vendo o balão” confirma ele. “Parece estar numa posição perfeita, conseguimos!”
Minutos depois, o arriscado procedimento chega ao fim. Quando Marie acorda, Peter está ao seu lado, na sala de recuperação. Uma enfermeira entrega a eles uma imagem do bebê, obtida antes da cirurgia. “Não acredito!” exclama Peter. “Olhe, Marie. Veja onde está a mão dele! Está nos jogando um beijo!” Eles riem, finalmente com o sucesso da cirurgia.
O teste final, porém, só vai acontecer após o nascimento do bebê. Será que vai conseguir respirar?
Cinco semanas depois, Marie está de volta a um consultório do King’s Hospital. Nicolaides examina o monitor; sua testa está ligeiramente franzida. Então ele abre um enorme sorriso. Os pulmões quase que dobraram de tamanho. “Este bebê vai sobreviver”, afirma.
Uma semana mais tarde, quando a bolsa de Marie estoura, uma equipe de cirurgia completa, incluindo Nicolaides, espera para realizar um procedimento especial de cesariana.
Depois de abrir o útero e expor o rosto do bebê, um cirurgião pediátrico lhe abre a boca, introduz um endoscópio em sua garganta e remove o balão da traqueia. Agora o parto pode prosseguir normalmente e o cordão umbilical é cortado.
A filhinha de Marie e Peter respira pela primeira vez e chora.
É quase inverno e as árvores em Denmark Hill estão sem folhas quando Marie e Peter se aproximam do King’s Hospital para apresentar Beth ao Dr. Nicolaides.
O cirurgião abraça Marie e afaga a pequena Beth. Ele demonstra um certo pesar quando os dedos tocam os tubos de oxigênio no nariz da menina – os pulmões imaturos ainda precisam de ajuda. O cirurgião percebe o amor que o casal dedica à filha tão esperada. Ele olha nos olhos serenos da criança e a alegria irradia de seu rosto.
Hoje, aos 3 anos, Beth é inteligente, curiosa e tem um sorriso esperto. Começou a frequentar a escola e já está livre dos tubos de oxigênio, respirando sozinha. Desde o nascimento de Beth, os três cirurgiões já trataram mais de 40 bebês ainda no útero com problemas sérios de hérnia diafragmática, em Londres, Bruxelas e na Espanha.
Fonte: Aileen Ballantyne