Esperança de boa gravidez

Só após ter tido três abortos, normalmente entre a sexta e a sétima semana de gestação, é que a professora universitária Viviane de Souza Garrido, 34 anos, chegou ao final da gravidez. A decepção a cada novo aborto era seguida de milhões de dúvidas sobre a impossibilidade de levar a gestação até o fim. “Nenhum médico que consultei em Salvador me dava resposta. Os exames passados eram os comuns para esses casos e não acusavam nada de anormal”, conta Viviane, que chegou a ouvir de um obstetra que aquilo era “comum acontecer”. Decidida a ser mãe, não se conformou com o diagnóstico.

“Passei a pesquisar até chegar a um médico de Fortaleza, que me aconselhou a investigar a causa do problema por meio de uma técnica nova no Brasil, uma vacina, que vinha dando bons resultados em casos como o meu”, relata. O tratamento a que se submeteu é a chamada imunoterapia com linfócitos paternos. Não se arrependeu. Hoje, feliz e realizada, é mãe da pequena Marianna, de 9 meses. “Foram dois meses de tratamento. Engravidei dois meses depois e consegui levar a gestação até o final. O tratamento me deu uma explicação lógica para o meu problema. Eu apostei e não me arrependi. Valeu a pena”, diz.

Viviane tinha o que os médicos chamam de aborto recorrente, de repetição ou habitual, que se caracteriza por três perdas consecutivas de gestação. Normalmente, esses abortos acontecem pela semelhança entre as informações imunológicas da mulher e do marido, o que faz com que o organismo materno não produza os anticorpos bloqueadores que têm a função de impedir o mecanismo de rejeição em relação ao embrião, que traz informação imunológica do pai.

“Quando a informação imunológica do casal é diferente, como acontece normalmente, o organismo da mulher reconhece o feto como um corpo estranho, mas, logo depois, passa a produzir os anticorpos bloqueadores que evitam o aborto espontâneo”, esclarece o ginecologista e obstetra Manoel Sarno.

Estima-se que em torno de 20% dos casais no mundo tenham um aborto. Destes, entre 1% e 3% são recorrentes. No Brasil, a estimativa aponta para um milhão de casais, sendo que a Bahia responde por 100 mil. Os abortos recorrentes podem ser precoces, como o caso de Viviane, quando acontece até a 12ª semana, ou tardios, a partir da 12ª até a 20ª semana, e chamados de primário, se a mulher não teve nenhum filho, ou secundário, quando tem pelo menos um.

São várias as causas que levam a um aborto recorrente. Os precoces geralmente estão ligados a causas genéticas, imunológicas, infecciosas e hematológicas (alteração na coagulação do sangue). Problemas hormonais, como a insuficiência lútea (incapacidade do organismo feminino produzir progesterona), também são causas importantes de abortamentos precoces, além de doenças maternas graves.

Os abortamentos tardios estão mais relacionados, além dos problemas infecciosos, a defeitos anatômicos do útero, como insuficiência istmo-cervical (dificuldade do colo em segurar a gestação), ou a defeitos na divisão do útero (bicorno, didelfo ou septado). “Dentre as causas genéticas, deve-se chamar a atenção para mutações de gens responsáveis pela coagulação do sangue”, salienta Sarno.

O médico explica ainda que a causa imunológica pode ser autoimune (imunidade contra si mesmo) ou aloimune (imunidade contra outro indivíduo). É aí que a vacina tem-se mostrado eficaz. “Cada vez que a mulher tem mais aborto, maiores são as chances dela ter aborto novamente. Se são mais de três, as chances de um outro aborto pode chegar a até 70%”, destaca.

COMPATIBILIDADEFoi também a semelhança imunológica sua e do marido que fez com que as três fertilizações in vitro feitas pela empresária Andréa Leone Bastos não tivessem dado certo. Na época, ela não sabia disso. Descobriu através de um obstetra que integrou a equipe do médico que utilizava a imunologia da reprodução em Campinas, São Paulo, o médio Ricardo Barini.

“O crossmatch, o exame que detecta a compatibilidade imunológica, e o tratamento foram feitos lá, já que, na época, Salvador não tinha esse tipo de tratamento”, relata Andréa. Com o resultado, o médico indicou três doses da vacina antes de ela engravidar e, posteriormente, que repetisse o exame. “Logo depois, engravidei, e foram indicadas mais três doses”, conta Andréa, grávida de cinco meses.

“Acho que quem tem dificuldade em engravidar deve tentar descobrir se é esse excesso de compatibilidade a razão do problema e, se for, tomar a vacina. Acredito que foi isso que me fez engravidar. É importante que a técnica já esteja disponível em Salvador, o que dá maiores chances para quem quer ser mãe”, avalia.

Outras técnicas, além da vacina, que beneficiam as mulheres que sofrem de aborto recorrente são a cirurgia no colo do útero após 14 semanas de gravidez (cerclagem), o uso de anticoagulantes, corticóides (doença autoimune) e imunoglobulina venosa, além da correção dos fatores maternos, como diabetes, hipotireoidismo, reposição de progesterona, dentre outras. Existem trabalhos indicando que o uso de vitaminas antioxidantes C e E pode diminuir a chance de problemas genéticos no embrião, o que reduz as taxas de abortamento. “É importante que as mulheres que sofrem abortamento de repetição investiguem as causas no período em que não estão grávidas, só tentando nova gravidez após a correção dos fatores que causam as perdas consecutivas”, aconselha Sarno.

Acesso à vacina ainda é restrito

A imunoterapia com linfócitos paternos – uma vacina que beneficia pacientes que sofrem de abortos recorrentes de causa imunológica aloimune ou que tenham falhas em ciclos de fertilização in vitro – passou a ser utilizada este mês em Salvador, trazida pelo mestre em ginecologia e obstetrícia pela Universidade de Campinas Manoel Sarno.

Por enquanto, só está acessível a pacientes particulares. Pelo SUS, apenas a Unicamp disponibiliza, mas está temporariamente suspensa. O custo dos quatro meses de tratamento fica em torno de R$ 3 mil. A vacina, aplicada no antebraço, é preparada a partir de um concentrado de linfócitos do sangue paterno. Com a aplicação, pode ocorrer uma reação local discreta, que é mais acentuada na primeira dose.

São indicadas duas doses da vacina, com intervalos de um mês. Após a segunda dose, repete-se o crossmatch. Se a mulher passou a produzir os anticorpos, ela é liberada para engravidar. Caso contrário, ou quando acontece uma baixa concentração de anticorpos, recomenda-se o reforço com o marido e/ou doador. Ainda durante o início da gestação é feito mais um reforço, com quatro doses com intervalo de um mês. Com esta técnica, 80% dos casais realizam o sonho de ter um filho.

Exames sugeridos

Veja os procedimentos para se investigar abortos recorrentes e falhas em ciclos de fertilização in vitro

PARA O CASAL

  • Prova cruzada (crossmatch)
  • Tipagem sanguínea: ABO e Rh
  • Cariótipo de sangue periférico com bandas
  • Sorologias para HIV I e II, HTLV I e II
  • Pesquisa de HbsAg e anti-HCV
  • Sorologia para Chagas e Sífilis (VDRL)

PARA A PACIENTE

  • Pesquisa de anticardiolipina e anticoagulante lúpico
  • Fator antinúcleo (FAN)
  • Antiperoxidase tireoideana e antitireoglobulina
  • Pesquisa de Mycoplasma e Chlamydia no colo uterino
  • Pesquisa de Streptococus beta hemolítico no colo uterino e na secreção vaginal
  • Sorologia para toxoplasmose e citomegalovírus
  • Prolactina sérica
  • Glicemia de jejum e pós-prandial
  • TSH e T4-livre
  • Teste de Coombs indireto
  • Dosagens de antitrombina III e das proteínas C e S
  • Dosagens das células NK (CD-3, +16, +56)
  • Pesquisa da mutação do gene do fator V de Leiden
  • Pesquisa da mutação G20210A do gene da protrombina
  • Pesquisa da mutação C677T do gene da metileno tetrahidrofolato redutase

Imunoterapia com linfócito

Quando começou: foi desenvolvida pelo professor Alan Beer da Finch University of Health Sciences/The Chicago Medical Scholl, em 1987. Atualmente, é usada nos EUA, Inglaterra, México, Chile, Argentina, Dinamarca, China, Índia, Austrália, Polônia, Israel e Japão. No Brasil, foi introduzida pelo professor Ricardo Barini (livre docente da Unicamp) em 1993, que estará hoje participando de uma conferência, pela manhã, sobre aborto recorrente no auditório da Maternidade Climério de Oliveira, no bairro de Nazaré. Atualmente, está disponível em Campinas, São Paulo, Fortaleza, Recife, Vitória e Salvador.

Fonte: Jornal A Tarde – Marilena Neco